Tentarei aqui aproveitar como ponte o prolífico e pertinente texto do Ciffero sobre a ratificação, publicado no posto anterior. Mas começarei esta ponte não pelo novo pontífice romano, que concedeu ontem seu primeiro Urbi et Orbi. Aliás, nem sei aonde tal ponte me levará, se é que levará.
Seguirei o mote da intelligentsia administrativa. Pontifica ela que o sucesso dum empreendimento não pode ficar à mercê do acaso e tampouco do diletantismo: é preciso planejamento e até replanejamento, estabelecer e cumprir metas. Até aí tudo bem, é como o sexo antes do casamento (segundo um pragmático português): é admissível desde que não atrase a cerimônia. O problema reside no fato de que isso (o planejamento) tende a tratar de modo reducionista os elementos envolvidos, isto é, a eliminar tudo o que possa gerar interferência em seu metodismo. Daí não entenderem ou aceitarem que o todo seja maior do que a soma das partes.
Dum jeito ou doutro, sucede-se o sucesso. E a rolha dos
tecnocratas estoura em júbilo imodesto, propelida como prova de sua
perspicácia. Pra eles, o sucesso apenas ratifica
o planejamento ("Bebo porque é
líquido", proclamou Jânio Quadros). Assim, capitalizam pra si esse
sucesso, mesmo quando ele ocorre meio "por acaso" — porque o acaso
lhes é inadmissível, e se por acaso o acaso atender pelo nome de Sucesso e
negar-se a ser deduzido do planejamento (ou extrapolá-lo), farão a ressalva de
que ocorreu inadvertidamente, portanto
é indigno de confiança, salvo se for assimilado ao planejamento.
Entretanto, esse sucesso "inesperado" coloca o status quo noutro patamar, exigindo
novas abordagens a fim de evitar o declínio e de reeditar-se. Como? Pelo upgrade da cartilha do administrativismo,
segundo a qual o a posteriori decorre
do a priori (assim como a criança, em seu animismo, acha p.ex. que a lua a está acompanhando).
Isso se aplica a
fortiori no Futebol. Os clubes de ponta funcionam à base de muito dinheiro,
como grandes empresas, portanto precisam ser bem administrados (o que exclui a usurpação, o desvirtuamento, a negligência, a fraude etc.). Mas não podem ser encarados tão-somente como empresas: não são
clientes, consumidores e acionistas a razão
de sua existência, mas sim torcedores
que não querem saber de lucros, e sim de títulos. Que a administração tire
títulos dos lucros e vice-versa, pouco importa à torcida. O marquetismo da
visão empresarial lhe é anódino,
assim como o balcão de negócios. Tudo deve ser subordinado ao futebol, cujo
objetivo é vencer e conquistar títulos na medida do possível e do impossível.
II
Uma vez (nem faz muito) certo dirigente colorado (ou era cruzeirense?), avaliou duas competições em termos de lucro: segundo ele, era mais lucrativo (leia-se preferível) participar duma do que vencer a outra. Típica visão do administrador, do empresário, do capitalista.
Uma vez (nem faz muito) certo dirigente colorado (ou era cruzeirense?), avaliou duas competições em termos de lucro: segundo ele, era mais lucrativo (leia-se preferível) participar duma do que vencer a outra. Típica visão do administrador, do empresário, do capitalista.
Afinal, dá pra imaginar alguém torcendo por uma empresa? Digo torcendo no sentido esportivo,
ludopédico, e não aquela ansiedade de acionista. Pois é, não rola porque falta coração. O relacionamento do torcedor com o seu
clube vai muito além do razoável. O adjetivo apaixonado seguidamente se aplica a esse sujeito. Pelo time o seu
coração dispara ou aperta, explode de alegria ou fica doído de tristeza. Trata-se apenas dum "esporte", no
qual os jogadores "não estão nem aí", "só querem contar
dinheiro"... Mas isso não faz sentido pra esse cara. Ele incorpora o
clube, está por demais identificado com essa entidade. Ele quer que seu time
vença e que seu rival se ferre. O resto é o resto, secundário.
Ao mesmo tempo, fica fulo se os dirigentes dão sinais de
incompetência ou improbidade, se os empresários estão usurpando o clube, se os
jogadores se mostram mercenários, indignos, inaptos. O que fazer contra isso? virar
as costas, fazer de conta que "é só imaginação"? escrever à
ouvidoria, desassociar-se, esperar as próximas eleições, largar pras cobras? O
torcedor sente que ele e mais ninguém preza de verdade o seu amado clube: se
este está em baixa, ele sofre; se está em alta, fica empolgado. Então como
transformar essa criatura em mero cliente ou consumidor?
Primeiro, às expensas da paixão: ao fazer concessões ao marketing ou por ele ser aliciado,
torna-se menos fanático e mais fantoche. Segundo, elitizando a torcida: o poder
aquisitivo do povão não lhe permite ser sócio? compra produtos não-oficiais (piratas)? nem sabe o que é pay-per-view?
Azar do Zé-Povinho, uai, pois à luz dos gráficos e cifrões não merece o clube que diz amar. Ah, mas o clube tem
as ações de inclusão, os projetos sociais! Tudo muito louvável, porém nada
justifica que o torcedor "mais humilde" dificilmente possa ir a um
jogo do dito Clube do Povo, como se o estádio não fosse o seu lugar, como se
ele não soubesse portar-se bem, como se fosse estragar o estofado... Mas esse
humilde torcedor não é burro como o julgam, longe disso. Ele se dá conta, por exemplo, que o
negrinho perneta, debochado e "politicamente incorreto", após quase
ter sido banido como mascote, agora está em segundo plano, tendo de dividir a
cena com um miquinho branco; e que não pode levar o filho(a) ou neto(a) pra conhecer a casa
do seu Inter querido, mesmo em jogos de pouco apelo, a um estádio que foi
erguido graças à doação de tijolos e cimento, inclusive por quem nem tinha onde
cair morto.
Sem falar que, no novo Beira-Rio, o acesso tende a se tornar
mais restrito e elitizado. O clube, subordinando-se como empresa ao fator
econômico, renega suas origens e sua história. É preciso chegar a tal ponto? é
justo? é válido? Ainda mais num esporte de massa, onde os "atletas"
em sua grande maioria advêm das classes menos favorecidas, das vilas e favelas,
do sertão e dos cafundós, donde só tem "feios, sujos e malvados".
Lembro de o Clemer, logo após a chegada do Japão naquele final de 2006, dizendo ter-se comovido
no trajeto da base aérea até o Beira-Rio, dentre outras coisas, por ter visto
"aqueles torcedores mais humildes, que juntaram uns trocos a fim de
comprar uma costelinha pra assar na calçada, à espera dos campeões" (mais
ou menos nesses termos). Sim, eles nem puderam cogitar em ir a Yokohama, mas
viveram cada instante da ilíada dos heróis de todos nós colorados, heróis
esses que, não fosse o futebol e os acasos da vida, talvez estivessem lá, assando a sua costelinha num dia muito especial, tomando aquela ceva, nobres de espírito esperando felizes pra confirmar que o idílio era mesmo real.