PLAY ANTES DE COMEÇAR A LER (SEM PRESSA)
Shakuhachi [The Japanese Flute] - Kohachiro Miyata (Full)
Certa manhã,
após banharem-se
nas abençoadas
águas
do Rio Guaíba,
Ramirezu Sensei *
e seus discípulos
caminhavam
pelos domínios
do templo
Parque Gigante,
quando um deles
lhe perguntou
afoito
— O que é o zen,
afinal?
Então o mestre,
apontando um cão
deitado à beira
do
passeio,
disse:
— Pergunte ao cão!
E o cão,
por sua vez:
— Pergunte à pulga!
E a pulga:
— Pergunte ao pó! **
E o pó:
— Pergunte ao popó! ***
E o popó:
— Pergunte ao popô!
E o popô:
— Pergunte ao pipi!
E o pipi:
— Pergunte ao pum!
E o pum:
— Pergunte ao polvo! ****
E o polvo:
— Pergunte ao MAR! *****
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* Ramirezu é como fica em japonês o nome de nosso "estagiário de luxo" — o R é sempre líquido (que nem no alemão: 'Reich'), i.e. pronuncia-se igual ao nosso R do meio (e.g. 'caReca') — e Sensei (mestre, professor) pronuncia-se 'sensê'.** Pergunte ao Pó — romance de John Fante (Ask The Dust, 1939, prefaciado 40 anos depois por um tal Charles Bukowski, que o tinha por ídolo); virou cult entre neobeatniks et alii (muito narigão deve ter entendido o pó" do título como lhe convinha pragmaticamente e talvez se decepcionado com o conteúdo). A primeira tradução no Brasil (1984) foi feita pelo Paulo Leminski, em edição da extinta Brasiliense (logo adquirindo status de fetiche e raridade), incensada como "lendária", "obra-prima tradutória" etc. Casualmente, dia desses vi o livro na vitrine dum sebo, perguntei o preço, achei caro e dispensável... dias depois estava ainda ali... então, na manhã chuvosa de ontem, quinta 10/06/2021 (data do 2º. xoco mata-mata sem mamata contra o Fitória pela Cobra2021), enquanto eu escrevinhava estas linhas da "bostagem" ("póste" em dunguês), resolvi pegar na estante a minha edição (Ecco, NY 2002), e dando uma relida no último capítulo, fui tomado pelo impulso de sair correndo rumo ao referido sebo, sem guarda-chuva nem nada, e fui o mais rápido possível, com medo de que qualquer delonga poderia ser suficiente pra algum excomungado chegar antes... graças a Hermes a.k.a. Mercúrio, o repentino objeto do desejo continuava estava no mesmo lugar... e sendo atendido pela vendedora talvez meio assustada com meu aspecto de possesso, me pus a disfarçar o interesse... Enfim, admito ser fetichista em matéria de livros (i.e. um bibliófilo amador e punheteiro, de parcos recursos), com mania de cotejar traduções de tantas línguas e edições a que tiver acesso. Será que esta é o bicho mesmo? (A tradução lesminsquiana do Satyricon, direta do latim, também pela Brasiliense, eu não curti... Aliás aproveitei a ida ao sebo pra comprar baratinho uma tradução que eu achava que não tinha, a do Marcos Santarrita, Civilização Brasileira, 1972, bem conservada, e em casa vi ser a mesma da Abril Cultural, 1981, porém com "Apresentação" e texto nas orelhas; fechando o pacote, peguei — ou melhor, fui pego! a novelinha me achou — Carmilla: Morrer de Prazer, seguido de Chá Verde, da de Sheridan le Fanu, Col. Cantadas Literárias, 1985.) Voltando ao Pó: quanto ao título, observa o seguinte: "Ocorre porém, que o verbo to ask, em inglês, também pode significar 'pedir', 'pedir o jantar', por exemplo: 'Peça o Pó'? Por fim, to ask, ainda, significa 'convidar': 'Convide o Pó'. Esse pó de palavras que Fante espalhou por tantas páginas." Hmm... (Em Portugal ficou "Pergunta ao Pó".) Disponível em catálogo, tem a tradução do também curitibano Roberto Muggiati (2003), decerto mais "sóbria" que a pioneira (Leminski, sensei de judô, completaria 45 invernos quando a cirrose lhe deu ippon, i.e. xeque-mate). No mais, Hollywood a.k.a. Oliú fez uma adaptação palha pro cinema (2006) — menos mal que eu já tinha lido no século passado (leitura que me pegou em cheio). A propósito, na narrativa tem cão — mais especificamente, cachorinho (sic)...*** popó: "sm coloq Vaso para urina e dejeções de uso noturno; penico, urinol." (Michaelis).**** polvo: em espanhol "sm 1 Pó, poeira. [...] 2 heroína (droga). EXPRESSÕES: echar un polvo ter relação sexual." (Michaelis).https://pergunteaopolvo.com.br/***** MAR: monograma de Miguel Ángel Ramírez; a anedota em versos foi composta antes de sua iminente demissão.
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Nota 2:No intuito de evitar suspeitas de plágio, e ainda de que constatem a extrapolação da ideia original nesta minha paródia séria (pois também encerra algum ensinamento zen), revelo aqui a fonte: → Learning Zen from a DogNa historinha, após todos se banharem o discípulo pergunta ao mestre o que deveria compreender... daí o mestre lhe diz pra se espelhar num cusco que por ali lagarteia, e o discípulo retruca que não quer aprender com aquele cão... o mestre lhe indica outro, o discípulo insiste em dizer que não tem nada a aprender com cão nenhum porque só sabem dormir, comer e reproduzir-se, ao passo que ele tinha procurado o mestre justamente a fim de libertar-se disso... ao que o mestre encerra a conversa respondendo que ele, o discípulo, também comia e dormia... (E a reprodução?) Enfim, me faz lembrar Diógenes de Sinope a.k.a. O Cínico, patrono deste blogue cânico.P.S.: dada a polissemia de cão, "Pergunte ao cão!" pode equivaler a "Pergunte ao diabo!", i.e. "Vá pro diabo que carregue!".
Tomando por base A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen (2011), de Eugen Herrigel (Zen in der Kunst des Bogenschießens, 1984 — literalmente, "Zen na Arte do Tiro com Arco"), onde o ato de mirar mais atrapalha do que ajuda a acertar o alvo, podemos dizer que no esporte a obsessão pela vitória tende a levar à derrota. Assim, no futebol a.k.a. ludopédio a.k.a. balípodo a.k.a. 'calcio' a.k.a. ποδόσφαιρο, a maestria só pode ser alcançada quando a intenção ou pretensão de ganhar o jogo — portanto de fazer golos e não tomá-los — é esquecida e deixa de existir; a própria ideia de vitória, empata-foda e derrotinha perde o sentido, pois o importante é o aprimoramento da técnica, da habilidade, da estratégia, do preparo físico e mental, do entrosamento, da capacidade de improvisação e superação nas mais diversas circunstâncias, da abstração contemplativa, do insight, do estar presente em comunhão com o Todo, o Nada, a transitoriedade. A essa arte podemos chamar de futebol zen, o qual deve prezar a meditação sem perder a ludicidade; no caso de clubes profissionais, só será possível se houver também uma torcida zen (o Inter miguélico evoluiu bastante nesse sentido).
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Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris.
"Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó voltarás". Palavras de Deus a Adão após o pecado original, na tradução latina da Vulgata (Gênese, 3, 13); repetidas pelo padre quando, na quarta-feira de cinzas, marca de cinza a testa dos fiéis. Memento homo, quia é título e estribilho de um poema de Alphonsus de Guimaraens. (in: Paulo Rónai, Não Perca o seu Latim, 1980.)
Ut recte valeant!
HEZEN SAKE
a.k.a. Henze Saci