Barão de Coubertin |
Sobre homens e ratos
Por Ciffero de Parvalho
Sabemos todos que uma das maneiras de fazer valer um argumento é apelar, primeiramente, à dicotomização, isto é, polarizar o tema sobre o qual se fala, a fim de marcar posição, conquistar aliados e definir claramente quem é o inimigo.
No futebol, não é diferente. Eu próprio faço uso, no título deste texto, de uma tradicional dicotomia: ao sustentar a tese de que há homens e há ratos, quero, obviamente, insinuar, desde o princípio, que o segundo termo do título, ratos, faz referência a homens covardes, menores, que não se comparam aos homens propriamente ditos.
Pois bem, elencadas as premissas de que parto, passo, a seguir — e para não cansar o leitor hodierno, que, não raro, reclama de ler parágrafos e textos longos — a um tema intimamente relacionado ao presente de nosso clube. Reporto-me ao seguinte: deve o torcedor colorado, nestas alturas do campeonato, apoiar o trabalho que está sendo feito pelo time engendrado pela Direção atual ou deve não apoiar? Ora, essa dicotomia é de fácil resolução e, no frigir dos ovos, acaba por privilegiar o primeiro termo, o apoio, uma vez que mesmo os torcedores que abominam a “decadência” do time desde a Libertadores de 2010, são, em última análise, colorados e, portanto, não deixariam de apoiar, ainda que em menor medida do que os torcedores satisfeitos, o que há de bom no presente.
Dito isso, saio da dicotomia e ingresso em uma síntese, qual seja, aquela que parte do pressuposto de que todos os colorados querem o melhor do time (e, por extensão, do clube), independentemente de quem esteja na Direção. É sabido que o atual Presidente não goza de apoio incondicional da torcida, nem, tampouco, de todos os Conselheiros, em boa parte porque houve manobras políticas, nas últimas eleições, que a muitos não agradaram. Cumpre, para fim de levar a cabo o argumento exclusivamente futebolístico, abstrair essa questão política e clubista. Porém, antes disso, necessito de mais um parágrafo.
Como antigo comentador arbóreo em espaços virtuais (blogs e fóruns de discussão) de pouco oxigênio, venho tentando, ao longo do tempo, demonstrar, talvez mais dialeticamente do que dicotomicamente, que o Clube do Povo passa, já há 15 anos, por uma crise de identidade. Não se trata, como disse acima, de mera escolha política, ou de mera preferência por este ou por aquele grupo de comando; trata-se, isto sim, da implementação de um novo modelo de gestão (ou de “indigestão”, como talvez dissessem o legítimo Ciffero de Parvalho e o perspicaz Henze Saci). Nesse modelo, a “profissionalização” é posta como uma idealizada vestal diante de uma suposta e concreta “esculhambação”, isto é, diante de tudo que não incorpora determinadas doutrinas e regras de um campo do pensamento político que bem conhecemos, qual seja, aquele que desde o princípio instaura termos e necessidades vicárias, como “CEO”, “estádio modelo shopping-center”, “nova realidade econômica (e consequente banimento de torcedores ‘menos privilegiados economicamente’)”, “roletas eletrônicas, para que somente ‘pessoas de bem’ entrem no estádio” — argumentos todos favoráveis a um estado de coisas bem conhecido na história recente da Humanidade, bem como a uma espécie de privilégio de castas que afasta, e já afastou, como eu mesmo disse em outros sítios, o torcedor humilde, aquele que pagava os seus “cinco cruzeiros” e vivia, com seu radinho de pilha, alguma felicidade na antiga coréia. Hoje, ficou só com o radinho de pilha.
Terminada a digressão política, e populismos postos à parte (o que não exclui o velho e bom humanismo), volto ao futebol, já que estamos diante de um impasse nesse campo. O Internacional vence o primeiro turno do Campeonato Gaúcho com uma vitória maiúscula sobre o São Luiz. O torcedor colorado mais simples está contente... Porém, o colorado mais crítico pergunta-se: “O que faço agora?”. Outras perguntas prováveis desse colorado: “Será que devo elogiar esse time que está aí?”; “Será que devo esquecer as agruras vividas nos últimos dois ou três anos?”; “Será que devo elogiar uma Direção de que não gosto?”.
Muitas vezes, por responder “não” a essas três últimas perguntas, pensa o colorado crítico que está prestando um serviço de excelência a todos que o cercam, ao seu auditório, como diriam Chacrinha e Perelman — como se fosse esse coloradinho o último baluarte da razão e do verdadeiro interesse pelo bem-estar do time e do clube. Pensa mais o tal coloradinho: que os demais colorados, tolos e facilmente ludibriáveis por uma ou outra vitória, jamais poderiam alcançar seu ponto de vista, porque não pensam, ó imodéstia própria de mentes obtusas, como pensam os verdadeiros detentores da razão, os críticos do amanhã, ele e seus filhos, infensos para sempre à objetividade.
Cumpre, por fim, analisar precisamente isso: a objetividade, mote primeiro do futebol, consumado sob a forma de vitória. Como devemos a ela nos curvar sem que percamos a dignidade? Sem parecermos, como diria insigne dramaturgo carioca, “idiotas” dela mesma? Verifica-se, facilmente, que o pensamento futebolístico, crítico ou não, é todo dicotômico. Senão vejamos: uma vitória sobre clube do interior, em final de turno, é ou não é melhor do que uma derrota? Até mesmo em elemento externo a essa equação, qual seja, o fato de o maior rival estar fora da disputa, prevalece o raciocínio dicotômico: é ou não é melhor estar na final do Gauchão do que não estar? Dirão os críticos, verdadeiros reis da extrapolação: “Ah, mas eles estão na Libertadores”. Pergunto-lhes eu: vocês estão de fato preocupados com o estar na Libertadores ou com o vencer a Libertadores? É óbvio que a preocupação maior é com a possibilidade de o rival vencer a Libertadores, o que, de resto, só reforça a tese de que o raciocínio no Futebol, mesmo entre os críticos, é sempre — perdoem-me a insistência — primeiramente voltado ao que acontece no campo e, conseqüentemente, dicotômico, pois lá só nos importa a vitória em contraposição à derrota. Mesmo quando se sai da quantidade — Campeonato Gaúcho — e se passa à qualidade — Libertadores — o que interessa ao torcedor, simples ou crítico, é o ganhar, pois é aí que reside a essência agonística do futebol, ao contrário, a propósito, do que pregava o Barão de Coubertin. Fôssemos dialéticos nesse quesito, quereríamos todos, talvez, o empate eterno, a supremacia do princípio da eqüidade, tão bem defendido por Rawls.
O problema de fundo é que os torcedores críticos (cujas características estão elencadas acima) trabalham mal a lógica. Quando o clube pelo qual torcem tudo ganha, entopem-nos com raciocínios exclusivamente dicotômicos, não raro soberbos: “Nós somos os campeões (infere-se: os outros, os perdedores)”; “Não tem para ninguém”; “Campeão de tudo”. Abstraem, nesse caso, os problemas administrativos em prol do prazer que extraem da vitória. Basta que o clube passe a perder, ou a deixar de ganhar mais freqüentemente, para que passem a extrapolar a dicotomia que antes os governava. O futebol passa, então, ao segundo plano, e entra em campo a “ciência” da Administração.
Dessa ciência conheço bem os pressupostos e os produtos, em boa parte abomináveis. Em verdade vos digo, ó animálias sem espírito: Vós, que fostes campeões do mundo com Ceará, Edinho e Wellington Monteiro, não sabeis que aquela vitória não é fruto de boa administração? Ou acaso pretendeis defender a tese de que um bom administrador contrataria jogadores daquele quilate para enfrentar o supra-sumo catalão e mundial da administração ludopédica? Não enxergais, ó almas ignaras, que o futebol é também fruto do momento e do que ocorre em um dia de trabalho sob o sol?
Separemos, então, o joio do trigo, a política do futebol e os ratos dos homens. No gramado, seja grama de jardim, seja grama de última geração, está sempre, queira-se ou não, diante do olho do colorado, somente aquilo que ele pode e consegue, kantianamente, enxergar: o time do Sport Club Internacional. Os homens voltam-se ao campo; os ratos, ao fétido gorgonzola da cozinha de seu CEO predileto. Do time ao clube há uma vida e léguas de distância, na mente e no espírito. Aqui e em Ijuí. Os jogadores são passageiros, NÓS somos passageiros. No futebol, o mito suplanta a história.
O jovem Nietzsche |